quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Chão de Estrelas

Eu estava andando na rua, lá pela área da Mooca, quando fui chamado de canto por um velhinho que estava sentado em um desses bancos na frente das casas, que é coisa bem característica do local. Ele me chamava de 'meu jovem' e pedia para que eu fosse falar com ele. Ele estava com um gatinho no colo, ronronando alto demais, como se falasse obrigado pelos carinhos. Como não estava atrasado para nada, achei interessante ir descobrir o que ele queria e lá fui eu.
Ele me cumprimentou e perguntou-me o nome. Após as apresentações, Seu Juca me perguntou se eu sabia o que eram aquelas tampinhas gastas, no asfalto. Disse-lhe que nunca nem reparado nelas tinha. Ele então começou a contar uma história antiga, mas que certamente lembrava-lhe boas coisas, pois ele sorria ao contar.

"E lá pra antes da segunda guerra, eu como um bom jovem que era, não me misturava com coisas ruins, como bebidas ou brigas. Vivia brincando com os amigos e não prestava para muita coisa, mas certamente não fazia nada errado. Ao fim de uma tarde, guardei meus brinquedos e parti para casa, todo sujo e suado. Ao passar por uma casa, vi o rosto dela pela primeira vez. Uma moça olhando-me pela grade de um portão, com uma curiosidade acima do normal, fazendo-me corar da cabeça aos pés. Desviei o olhar e parti correndo para casa, sem olhar para trás, morrendo de vergonha. Nos dias seguintes, não consegui mais vê-la e assim passou. Logo tornei-me adulto, e os brinquedos ficaram guardados, enquanto passeava com as meninas pelo bairro. Era uma vida boa, antes da guerra, sabe?
Quando as bombas começaram a cair, lá em Londres, nós tivemos que escolher entre servir ou ficar. A força expedicionária já tinha partido pra Itália e existia muitos cargos na Marinha, desde oficiais de comunicação, até limpadores de convés. Como na época o patriotismo era bem maior, meus amigos e eu decidimos sair de nossas casas e nos alistar para sermos a base da pirâmide. Seriamos os braços-de-força da Água. Não tenciono aqui mencionar como foi servir, já que nem participamos direito de Guerra alguma, mas os dias no mar deixavam-me feliz. A brisa soprava-me o rosto, enquanto o Sol queimava-me a nuca e o serviço ocupava-me os braços. Servimos por um ano e meio e neste tempo ganhamos muita massa corporal e experiência. Por fim, era hora de voltar para casa e rever familiares e amigos.
Este tempo todo no mar deixara-me confuso sobre como seria voltar para casa, mas caminhava pelo bairro como se ainda tivesse meus quinze anos. Andava pelas ruas lembrando-me de como era cada rosto familiar, mas as ruas estavam desertas. Passava pelas casas e demorava-me, como se delas as pessoas fossem sair. Chutava predras quando ouvi um assovio. Ao olhar, estremeci. Era ela. A moça da infância havia se tornado uma mulher, mas não deixava de apresentar o mesmo rosto e sorriso, apoiada na grade. Tremia, mas não queria sair correndo como na infância, então fui em sua direção e perguntei-lhe o nome. Ela nada disse. Apenas assoviava uma canção triste, enquanto a lua iluminava-a e dava um toque de azul à sua pele. Ficamos um bom tempo apenas nos olhando, antes que ela começasse a falar de uma história em que os marinheiros recém-chegados à costa bebiam em comemoração à vitória e às suas amadas e despejavam tampinhas de garrafas em suas homenagens, na frente de susas casas, para assim conquistá-las. Após contar a história, ela virou-se e deixou-me só, na frente de seu portão. Eu já sabia o que fazer."

Após contar este trecho, ele disse-me que estava tarde e que deveria entrar, mas não sem antes mostrar uma fotografia de uma bela jovem, cercada nos pés por pequenas tampinhas de garrafa. Deixou-me com o gatinho e eu pude enfim perceber que o chão todo estava crivado de tampinhas foscas e que elas ocupavam toda a rua, até onde a vista alcançava.

Nenhum comentário:

Postar um comentário