segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Vaidade Assassina

Ligou o chuveiro e sentiu com a mão a temperatura da água começar a elevar-se. Sentiu até perceber que estava bom o suficiente, quente a ponto de gerar vapor de água em dia frio. Retirou a mão da água e enxugou-a na toalha recém colocada no piso, ao lado da banheira.
Um banheiro grande, com azulejos brancos por toda a volta, e pisos de negro fosco. Sem pias ou vaso sanitário, somente uma grande banheira de quatro pés, sendo marfim a cor de seu azulejo e dourado a cor de seus pés. Cabia uma grande pessoa dentro, folgada deitada ao fundo, que fazia com que a água utilizada a cada banho fosse muita. A água saía de uma torneira em uma das pontas da banheira e sua válvula também era dourada. A água caía na água e o barulho era relaxante, assim pensava. Além da banheira, havia um grande espelho de corpo inteiro, na parede do lado oposto de onde ficava a torneira da banheira, de modo que a pessoa que ali se banhasse, pudesse olhar-se no espelho. O espelho era liso, sem desenhos ou adornos, sem contorno ou borda. Era apenas um grande espelho que parecia-se demais com uma grande porta. Talvez fosse uma porta, diferente das que conhecemos.
Olhou-se no espelho com demora, analisando os contornos da roupa em seu corpo, verificando como a luz da lâmpada branca deixava sua pele mais clara que o habitual e projetava sombras entre os vincos do tecido. Olhava-se com desejo por si, pois sabia quanto desejo causava aos outros e sentia também o mesmo. Sentia-se bela.
Saiu do banheiro e logo voltou, carregando consigo sais e produtos variados para o banho. Retirou cada peça de roupa lentamente, como se não houvesse mais nada para fazer no dia, olhando cada manchinha e saliência no corpo. Retirou sua blusa, sua saia, sutiã e calcinha. Nua, abraçou-se e sentiu o calor de seu corpo. A janela estava aberta, então o vapor criado pela água não embaçava o espelho. De costas para o espelho, adentrou na banheira quase cheia. Sentiu seu corpo responder ao estímulo da água e viu o calafrio chegando até seu pescoço. Seus ralos pelos ficaram todos eriçados, deixando seus poros todos visíveis. No espelho, via-se uma mulher nua, de menos de trinta e cinco anos, com um corpo definido e belo, mas com uma cicatriz em forma de cruz que ficava do lado direito das costas. A cicatriz não diminuía em nada a beleza da mulher, mas não deixava de conferir à pele uma saliência bem característica de queimaduras de ferro. Não levantou o rosto em direção ao espelho enquanto sentava-se de costas para a torneira, que já não estava mais aberta. Soltou um grande gemido de prazer pela temperatura da água e por estar relaxada e ali ficou sem pensar por um tempo, olhando sua imagem que fitava-a.
O som de uma andorinha que passava rente à janela retirou-a de seu transe e começou a observar seu reflexo no espelho.
Sua imagem estava fixamente olhando-a. Os cabelos negros ainda, em sua maioria, secos, porém molhados nas pontas, foram lentamente afundando, até que não se via mais nada vivo no espelho. Ficou alguns minutos debaixo da água, de olhos fechados, sentindo a pressão no peito e o barulho característico nos ouvidos. Subiu lentamente e seu olhar encontrou-se com o da imagem. Um olhar penetrante que não deixava transparecer qual era verdadeiro, qual era reflexo.
Olhou-se ainda um tempo, antes de perceber que a imagem do espelho começara a tremeluzir igual à água de sua banheira. Não entendeu de imediato, mas também não sentiu medo. A imagem simplesmente tremeluzia como em um grande lago. Como se toda a água de um lago fosse colocada na vertical, em um retângulo de vidro transparente. Apenas ficou olhando sua imagem disforme e móvel, agitada no lago de vidro. Observou o espelho até que tudo ficasse novamente fixo. Foi quando percebeu um sorriso de escárnio na boca do reflexo. Este sorriso não estava presente em sua boca, como constatara com a mão, mas o reflexo sorria de uma forma diabólica para ela.
Não sabia o que estava vendo, achava que estava em um sonho, mas sentia como se tudo fosse real. O Sorriso se transformou em movimento dos lábios, mas não saía som algum da boca do reflexo, apenas um rosto diabólico falando coisas que não seriam compreendidas, se não fosse pelas palavras que ecoavam em sua mente. Não era como se estivesse ouvindo alguém falar, era como se ela mesmo estivesse falando e vendo o que falava no espelho. Não entendia como era possível e levou as duas mãos à boca, para tentar não falar nada. De súbito, suas mãos foram paralizadas na altura do pescoço e em vez de fecharem-se sobre a boca, fechavam-se, agora, sobre seu pescoço fino e delicado. Achava tudo muito surreal, mas não emitiu nenhum som de desgosto, pois sentira que algo assim aconteceria. Enquanto estrangulava-se, ouvia em sua cabeça o que dizia para si mesma. Falava obcenidades para si em tom gutural, apesar de parecer que deveria sair um som agradável de sua boca. Maldizia toda sua família e todas suas decisões. Apontava seus erros e falhas e diminuía seus feitos. Não conseguia mais ouvir a voz e sua visão estava ficando embaçada. Não sabia se era por causa da fumaça, que saía das partes de seu corpo que estavam fora da água ou se eram suas mãos que definitivamente estavam matando-a. Já não ouvia ou via mais nada, mas lembrou-se de pedir clemência e implorar perdão.
Acordou ainda deitada na banheira, mas o banheiro estava todo embaçado. A janela fechara-se por causa de uma andorinha e o ambiente estava cheio de vapor. O espelho já não exibia nenhuma imagem e ela decidiu que o último espelho da casa deveria ser destruído. Quebrou-o e sentou-se para esquentar um ferro em formato de cruz. Era hora de mais uma penitência por sua vaidade.

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